domingo, 11 de outubro de 2009

Capítulo 1: A Partida

Aquilo era tudo o que eu mais queria! Pelo menos interiormente, era o meu sonho! Sair do pequeno país que Portugal era e ir para os Estados Unidos da América. Mesmo que fosse para morar numa pequenina cidade do interior do país! Eu não me importava, mesmo nada.
Claro que não podia dizer nada disso à minha mãe! Ela teria uma síncope, no mínimo.
Desde que a mãe e o pai se separaram, há dez anos atrás, as coisas nunca mais foram as mesmas... e isso deixava-me no meio dos dois. Não gostava quando isso acontecia porque adorava-os aos dois. Não queria dizer à minha mãe que gostava mais dela que do meu pai. Era uma guerra na qual eu não queria entrar! Mas desta vez consegui impor a minha vontade e ia fazer o último ano do secundário na pequena cidade de Cravenwoods, em Washington, onde o meu pai morava agora, com a nobre posição de Comandante Terrestre da Marinha de Washington. Estava tão orgulhosa dele!
A razão para esta mudança de planos era muito simples. Mais um novo casamento! Era a segunda vez que a mãe se casava, sem contar com o pai! E eu aturava todas as suas birras sobre falta de atenção.
Bem! Cansei-me! Não sou nenhuma máquina que pode aguentar tudo sem explodir!
Sabia que a mãe estava chateada comigo, claro que sabia, ela fizera questão de o salientar, mas eu fiz de conta que não ouvira nada. Estava tão excitada com a viagem que nem me importei quando a mãe disse que o João me ia levar ao aeroporto.
Este não era muito simpático mas eu não tinha queixa nenhuma em relação ao comportamento dele, pelo menos não muita, com a minha mãe, mas queria dar-lhes algum tempo para eles.
Hoje de manhã, acordei muito cedo. A excitação não me deixara dormir.
Olhei para o despertador. Eram seis da manhã. Não conseguiria adormecer outra vez e o voo era apenas ao meio-dia.
Encostei-me na cabeceira da cama e peguei no único livro que estava fora das malas: Devil's Desire. Já era um livro velho e estava muito usado, pelas inúmeras vezes que o folheei só para sentir um pouco do romance que pairava em cada folha do livro de Laurie McBain.
“Não sou nenhuma feiticeira, Lord Trevegne! O meu cabelo não tem nada a ver com os meus supostos poderes sobrenaturais!”
Fiz uma careta. Bruxas! E ri. Continuei a ler, mas quase que não precisava de o fazer, já o sabia praticamente de cor. Era só uma questão de hábito.
Quando o pai partiu para os Estados Unidos, deixou-me todos os livros em português que ele tinha. Agora, levava-os a todos. Nem sequer me importei com o peso da bagagem. A mãe prometera despachar por DHL o resto das minhas coisas e os livros menos importantes.
Numa das outras malas, levava meu portátil, comprado na semana passada, embora já soubesse que a Microsoft funcionava a cem por cento nos Estados Unidos. Escolhi um Mac azul-escuro. Mas levava o meu HP[1] europeu no contentor. Era algo do qual não me poderia separar. Custou-me um bocado adaptar-me ao novo portátil porque o sistema era completamente diferente.
Levantei-me apenas para verificar, de novo, as malas. Abri-as, meticulosamente, para não desarrumar nada e verifiquei as roupas, os produtos femininos oferecidos pela minha mãe, a maquilhagem, também presente dela, sem nunca ter sido usada.
Na mochila de mão, levava os meus cadernos e material de escrita, outra das coisas sem a qual não podia viver.
Não que eu nunca tivesse ido visitar o meu pai, mas visitá-lo era uma coisa, agora ir viver com ele, estava a dar comigo em doida de tanta felicidade.
Voltei a fechar tudo e ouvi a mãe a acordar. Não demoraria muito a bater à porta do meu quarto, esperando encontrar-me a dormir.
Entrei na minha casa de banho para tomar um duche rápido.
Tentando parecer calma e talvez até um pouco entediada, vesti-me devagar. Nada melhor do que um par de jeans e um pólo preto. Calcei as minhas Chuck Taylors e fui tratar do cabelo. Comparado com ''todo o meu resto'', o meu cabelo era a coisa mais normal que eu tinha. Era preto e ondulado e muito brilhante, com um leve aroma a lírios.
Quando olhei para o relógio, sobressaltei-me. Já eram oito horas! Tinha de estar no Aeroporto Francisco Sá Carneiro às dez para fazer o check-in e, de acordo com o que conhecia da minha mãe, iríamos precisar de muita sorte.
A pancada na porta do meu quarto foi leve, mas mesmo assim não passou despercebida.
-Sim? - Disse.
-Sou eu querida. Já estás acordada?
-Sim, mãe, estou acordada e pronta. Queres que faça o pequeno-almoço enquanto vocês se arranjam?
Os olhos da minha mãe estavam inchados, sinal de que não dormira direito e passara a noite a chorar, como se eu estivesse quase a ir para a guerra. Na sua mente era o que eu estava a fazer.
-Se não te importares, querida, farias esse favor? É que já estamos um bocadinho atrasados.
-Não te preocupes comigo. Apenas terão de se contentar com torradas e café, ou cereais - avisei.
-Não tem problema, querida, já vais fazer muito.
A mãe deu meia volta e foi embora. Sem mais uma palavra. Eu conseguia perceber que ela estava zangada comigo, mas não percebo porquê. Eu preciso de mudar de ares. Estou muito nervosa. Por um lado, quero muito ir viver com o pai, mas por outro lado não queria que a mãe ficasse desiludida comigo.
Desci as escadas até à cozinha e liguei a cafeteira eléctrica para fazer o café. Pus as torradas no forno e preparei os meus cereais. O pequeno-almoço era sempre um dos momentos que eu não gostava de partilhar com a mãe e com o marido dela. Era sempre muito estranho. Além de eu nunca ter muita fome e quase nunca puder comer muita coisa e ele, que era médico nutricionista num dos melhores hospitais do país, estava sempre a insistir que eu comesse mais. Então tentava sempre despachar-me e saía antes deles.
Já estava sentada, a comer os meus cereais quando a mãe e o João desceram as escadas, ambos com má cara.
-Então sempre vais para Cravenwoods? – Perguntou-me o noivo da mãe, mais uma vez.
-Vou. – Respondi simplesmente.
Quando acabei de comer os cereais, levantei-me e fui colocar a tigela na máquina de lavar.
-Vou ao meu quarto ver se falta alguma coisa – informei.
A mãe levantou a cabeça e disse-me, sussurrando: - O que faltar eu mandarei por DHL, não tens de te preocupar com isso…
-Eu sei mãe, apenas não quero perceber que me falta alguma coisa importante.
Subi as escadas, quase a correr, e fechei-me no quarto. Ao menos ali não tinha de levar com os olhares reprovadores dele. A vida é minha, bolas!
Demorei cerca de vinte minutos a reverificar tudo. Estava tudo pronto. Faltava apenas colocar pequenas coisas como a escova de dentes, a escova de cabelo e o frasco de perfume, que o pai me deu quando fiz dezassete anos.
Peguei na mochila de mão e numa das três grandes malas de viagem, desci as escadas e, aproveitando que eles ainda estavam a comer, subi para trazer as outras duas.
Já os estava a pôr na mala do carro desportivo do novo “amor” da mãe, quando ela apareceu à porta de casa.
-Podias ter chamado. Não precisavas fazer tudo sozinha – disse ela, magoada.
-Não era preciso. Queria ser eu a fazer isto – respondi eu. Então, encaminhei-me para ela e abracei-a. – Desculpa por isto, mãe. Mas vocês precisam de passar algum tempo juntos e eu preciso de tempo para ordenar as minhas ideias. Não te queria magoar.
-Não é isso… Apenas fiquei triste por saber que não podes ter esse tempo aqui, connosco…
-Mãe, eu vou ter com o pai! Eu adoro-te a ti mas também gosto dele e quero passar um tempo com ele…
-Eu sei que não vais voltar para cá! É o que queres. Ficar lá, ser como ele, viver no grande país! Que bom!
-Mãe – chamei, de novo. – É apenas uma pequena cidade no meio de Washington!
-Pois, eu nem sequer sei onde fica Washington! Sempre foste como ele. Isto não chegou para ele e para ti também não!
-Mas, mãe…
-Não! Eu acho que consigo perceber isso! São apenas vocês! Nunca estão bem no sítio onde estão!
-Não queria que ficasses zangada mãe. Mas isto é o que eu quero fazer! Nada me impedirá de o fazer.
-Porquê…?
-Primeiro porque quero estar com o pai, sem ser só uma visita com data de partida estipulada, segundo quero conhecer os Estados Unidos. Mãe é a minha vida. Desculpa se te magoo mas é o que eu quero fazer. Desculpa mesmo.
-Então está bem, desculpa por ser assim, mas estou apenas preocupada. Não quero que sofras! Não te habituas com facilidade a nova situações…
-Eu sei, mãe. Mas desta vez tens de acreditar em mim. E o pai vai estar lá para me apoiar. Nem que seja quando eu cair! – Brinquei, tentando aliviar a tensão.
A mãe riu suavemente.
-Espero que não sejam tantas vezes como aqui… - respondeu.
-Não posso prometer nada. Qualquer coisa serve para me fazer tropeçar… inclusive os meus próprios pés…
-Vamos embora? – Perguntou o marido da mãe, da entrada principal da casa. – Tenho de estar no hospital às duas da tarde.
-Vamos embora! Tenho um avião para apanhar! – Disse excitada.
Depois de entrarmos no carro, ele deu a partida tão rápido que nem sequer tive tempo de colocar o cinto de segurança.
Parecia que ele estava descontente com alguma coisa. Não me atreveria a perguntar o que se passava. Tinha quase a certeza que era comigo. Só podia ser. De algum tempo para cá, cada vez que o via, ele parecia chateado comigo. Era certo que eu não aprovava o casamento deles, o João tem vinte e sete anos, a minha mãe trinta e nove, mas nunca o dissera abertamente! Eles eram completamente livres para fazerem tudo o que quiserem. Desde o momento em que eu entrasse no avião para Washington.
-Como vai ser o voo? – Perguntou a minha mãe, não muito interessada.
-Vou fazer escala em Londres. Não há voos directos para Washington. Sairei em Washington e o pai vai estar lá à minha espera.
-Será que vai? – Perguntou-me ele, deixando-me irritada. O pai não era assim. – Não tem trabalho nem nada?
-Ele trabalha muito, mas escolhemos a data de acordo com as férias dele. Ele vai estar em casa durante quinze dias, para me ajudar na integração.
-Quando começas as aulas? – Perguntou a minha mãe.
-Daqui a uma semana.
-Então tens uma semana para te habituares…
-Sim, mãe não te preocupes, vai correr tudo bem.
-Ligas-me quando chegares a Londres e depois em Washington? Quero ter a certeza que estás bem…
-Sim, mãe. Eu ligo.
Para acabar com a conversa, recostei-me no assento e tirei o livro e pus-me a ler.
Ele conduzia com uma mão no volante e com a outra a prender a da minha mãe, de um modo muito possessivo.
Eu não estava habituada a demonstrações de carinho em público, mas deveria estar, já que a mãe quase que coleccionava namorados.
O marido da mãe conduzia muito rápido, por isso, chegamos ao aeroporto dez minutos antes das dez da manhã.
Não gostava de pensar assim, mas sentia que estava desejosa de sair daqui.
-Bem… - começou a minha mãe. – Queres que fiquemos contigo até embarcares?
-Não, não é preciso, obrigado. Não quero prender-vos aqui.
-Não nos prende, querida! – Insistiu a minha mãe, antes de ele poder dizer que já estava atrasado.
-A sério, mãe. Podes ir embora. Precisas de almoçar para ir para o voluntariado – lembrei eu.
-Mas…
-Mãe!
-Tudo bem, Prue, nós vamos embora. Não te esqueças de me ligar quando chegares.
-Sim, mãe.
Dei um abraço à minha mãe e o esposo dela apenas acenou com a cabeça na minha direcção, numa despedida um tanto fria.
Não estranhei. Era um procedimento normal. A mãe dizia que ele estava sempre a pensar no trabalho. Eu não acreditava. Sabia que havia alguma coisa em mim que ele não gostava. Mas também, naquele preciso momento, era a menor das minhas preocupações. Em menos de dez horas estaria a aterrar em Washington e esqueceria tudo aquilo.
-Até breve – disse eu, recebendo como resposta um grunhido mal-humorado da parte de ambos.
Como tenho apenas dezassete anos e vou sair do continente, viajarei como menor desacompanhada. Não era algo que eu já não tivesse feito, apenas não era usual as pessoas verem uma jovenzinha fazer isso. Principalmente em Portugal, portanto quando entreguei o meu passaporte à menina do check-in, ela começou a olhar desconfiadamente.
-Quantos anos é que a menina tem? – Perguntou ela. Não era assim tão mais velha do que eu, apenas achava-se melhor por estar numa posição superior em relação a mim.
-Dezassete. Na primeira folha do meu passaporte tem uma autorização parental, no qual, o adulto responsável por mim, neste caso, a minha mãe, me permite viajar até Washington, onde o meu pai estará à minha espera.
-Tenho de verificar. Dê-me uns minutos – a rapariga dirigiu-se ao gabinete por trás dos balcões de check-in, bateu à porta e entrou.
Saiu de lá cinco minutos depois, com uma expressão mal-humorada. Parece que eu sempre tinha razão.
-Se não houver nenhum problema a menina pode embarcar – anunciou, contrafeita.
-Das outras vezes não foi preciso isto tudo, afinal de contas, se eu não pudesse embarcar não estaria aqui.
A mulher olhou-me, enfurecida, e tratou dos documentos.
-Por favor, aguarde naqueles bancos, sem fazer muito barulho.
Voltei a pegar no meu passaporte e, sem olhar para trás, dirigi-me ao banco mais perto da porta de embarque e mais longe dos balcões. Ao menos ali poderia ler sem ser incomodada.
Esperei durante hora e meia antes de poder passar pela porta de embarque, hora e meia em que não tirei os olhos do meu livro mesmo que já tivesse acabado de o ler. Não queria ser incomodada.
Quando me sentei no lugar 18, do lado da janela, preparei-me para os quarenta e cinco minutos da viagem até Londres. Não seria longa mas tampouco seria fantástica.
Nunca antes enjoara dentro de qualquer avião, portanto, nem sequer tomei as pastilhas de enjoo que a mãe tinha a mania de meter na minha mala de mão.
Recostei-me no assento e nem reparei nos dois rapazes que se sentaram ao meu lado. Voltei a pegar na minha mala, desta vez para tirar o caderno. Queria ao menos poder conversar com alguém mas, tal como a minha mãe, as minhas amigas ficaram um tanto chateadas comigo por eu ter decidido mudar-me para o outro lado do mundo. Mas não se podia ter tudo.
Uma das maneiras que eu encontrara para combater a crescente solidão foi a escrita. Eu escrevo sobre tudo e mais alguma coisa. Desde o mais pequeno comentário sobre um assalto à mão armada até à grande questão da Guerra no Médio Oriente ou as eleições nos Estados Unidos.
Desta vez era sobre a importância da música para a sociedade actual. Era algo que eu gostava mesmo. Poder dizer o que havia de bom e o que havia de mau sem ser criticada, sem me mandarem calar. Só queria ser eu mesma.
Da experiência que eu tinha dos Estados Unidos, todos ouviam todos, e todos comentavam o que quisessem. Ninguém era calado por apenas ter uma opinião diferente.
Bem, mas gostava de pensar que os textos que eu escrevia interessavam a alguém, nem que fosse a mim própria. Não se pode agradar a gregos e a troianos, era esse o ditado.
Mas não estava com paciência para escrever! Estava tão excitada que não conseguia arranjar uma posição confortável na enorme poltrona do avião.
Então, reparei que os rapazes que estavam ao meu lado não paravam de me olhar. E fiquei muito embaraçada. Não estava habituada a que me olhassem. Sou uma rapariga dentro do normal, se dentro do normal couber a minha habilidade para atrair sarilhos.
Fisicamente, não sou nada de especial! Até me irrita tanta normalidade! Sou mais alta que a média portuguesa, meço um metro e setenta e cinco, peso à volta de setenta quilos. A minha boca é talvez um pouco cheia demais para o meu rosto, o meu nariz é um pouco empinado, o que me deixa extremamente irritada. Toda a gente achava isso um sinal de elevado estatuto social, logo, cinismo e má educação. Não podiam estar mais enganados. Eu sou simplesmente uma rapariga normal, que passa despercebida em todos os lugares onde está e que é mais inteligente daquilo que deveria ser, tendo em conta que é uma mulher.
Olhei de soslaio para os rapazes ao meu lado. Continuavam a olhar-me. Engoli todo o meu embaraço e encarei-os também.
-Olá – disse o que estava sentado ao meu lado, num inglês com sotaque americano perfeito.
-Olá – ecoei, nervosa. Tinha de treinar melhor o meu, já perfeito, inglês.
-Eu sou o Ben. Aqui o meu amigo é o Jake – disse ele. Ben era alto, forte e loiro, com os olhos azuis; já Jake era mais baixo mas mais entroncado, tinha o cabelo castanho avermelhado e olhos verdes. Não teriam mais de vinte anos. Quis ter coragem para lhes pedir que me deixassem em paz, mas não consegui fazê-lo. Limitei-me a olhá-los e assenti.
-Vais para Inglaterra? – Insistiu o loiro, Ben.
-Vou fazer escala lá – respondi eu, evitando olhá-los nos olhos.
-Nós vamos para Phoenix. De férias – anunciou ele, não percebendo a minha falta de entusiasmo. – E tu, para onde vais?
-Washington – falou, contrafeita.
-De férias?
-Não. Vou morar com o meu pai – disse, desejando virar-me para o outro lado.
-A sério? – Perguntou Jake, falando pela primeira vez.
-Sim.
-Eu tenho lá família, será que conheço o teu pai? Como é que ele se chama? – Voltou a perguntar-me.
-Mark Jones - respondi evasivamente, virando a cara para a janela. A minha resposta pareceu tê-los calado, por isso, suspirei aliviada.
-E o que faz ele? – Perguntou Ben, voltando à carga. Mas agora a sua voz soou-me esganiçada. Como se estivesse com medo.
-É o Comandante Terrestre da Marinha de Washington – respondi com muito orgulho.
Desta vez ouvi-os engolir em seco. Havia alguma coisa errada nesta história toda, mas não tinha muita vontade de discutir o assunto com eles. Perguntaria ao pai quando chegasse a Cravenwoods.
-Qual é o teu apelido? Pode ser que o meu pai vos conheça – perguntei eu, virando-me finalmente para Jake. A cara dele parecia um monte de expressões de terror. O que quer que isso quisesse dizer, percebi que Jake estava em sarilhos com o meu pai e não me diria o seu verdadeiro apelido.
Deixei-os pensar durante um bocado antes de voltar à acção.
-Então? Qual é o teu apelido? – Voltei a perguntar. E o tempo continuou a passar sem uma resposta. – Esqueceste-te do teu nome?
-Simons – disse ele, rapidamente. Rápido demais, pensei eu.
-Eu perguntar-lhe-ei, então – mentalmente, já tinha feito a descrição física deles. Completa e com detalhes. Confiava plenamente na minha memória para saber que não me trairia quando falasse com o pai.
A hospedeira de bordo parou, então, ao nosso lado, perguntando-nos se queríamos alguma coisa.
-O que tem aí? – Perguntou Jake, com uma voz sedutora. Rolei os olhos. Rapazes! A hospedeira fez o mesmo que eu.
-Café, cappuccino, refrigerantes, aperitivos…
-Um whisky duplo, com gelo – disse Ben, olhando-me de soslaio.
-Quantos anos tem? – Perguntou a hospedeira, com um sorriso educado.
-Vinte e um – respondeu ele. – Temos os dois.
A jovem olhou-os, desconfiada. Realmente, ninguém lhes daria vinte e um anos, com aquelas caras de meninos travessos. Por fim, ela cedeu e serviu-o. Jake quis o mesmo.
-Menina? – Perguntou-me a hospedeira, desta vez, com um sorriso sincero. – Deseja alguma coisa?
-Um cappuccino, por favor – peçam, ignorando os sibilos descrentes dos rapazes ao meu lado. Depois perguntei-lhe, timidamente: – Desculpe?
-Sim?
-Já posso usar o computador?
-Claro que sim. Se precisar é só tocar à campainha.
Eu assenti e tirei o meu Mac[2] da mala. Teria de me habituar a ele.
Abri-o e digitei a minha password. O meu wallpaper era uma imagem minha com um rapaz muito giro.
-Quem é esse? – Perguntou Ben, áspero.
-É um actor português – respondi.
-É o teu namorado? – Voltou a perguntar ele.
-Credo! Claro que não! – Respondi eu, horrorizada.
Liguei a rede wireless e tive sorte de conseguir sinal positivo. Abri o meu e-mail só para verificar as mensagens que tinha. A Jéssica tinha mandado um e-mail há apenas quinze minutos. Com um pouco de sorte conseguiria apanhá-la no computador. Abri a mensagem dela.

“Querida Prue,
Desculpa a minha reacção quando soube que ias deixar Portugal para ir viver com o teu pai. Não estava a pensar nos teus sentimentos e culpo-me por isso. Pensava apenas que iria perder a minha melhor amiga.
Tenho tanta pena que te vás embora.
Mas também, daqui a alguns meses poderei ir visitar-te.
Quero que saibas que te adoro e que nunca te vou esquecer.
E quero que prometas que me contas tudo sobre os Estados Unidos.
Deves estar a achar isso tudo tão excitante! Que sorte! Sei que adoras os Estados Unidos e ainda mais o teu pai.
O Tiago convidou-me para sair com ele! Fomos ao cinema ontem à noite, ver um filme romântico. Quando me deixou à porta de casa deu-me um beijo magnífico. Estou a contar que me peça em namoro dentro de pouco tempo.
Meu Deus! Estou tão apaixonada por ele!
Boa sorte aí! Depois conta-me sobre os rapazes daí.
Espero ansiosamente a tua resposta,
Perdoa-me,
A tua sempre amiga,
Jéssica.”

Dei por mim a sorrir como uma idiota. A Jéssica era a minha melhor amiga e só ela conseguia dizer tanto em tão poucas linhas. A loirinha fora tão importante na minha vida que eu não sei como a consegui deixar lá.
Comecei a escrever a resposta que ela esperava tão ansiosamente.

“Querida Jéssica (e continuas a ser a minha mais querida amiga),
Compreendo perfeitamente porque estavas chateada comigo. É difícil ver as pessoas que amamos saírem do pé de nós.
Sofri isso quando o meu pai foi embora. Agora vou ter com ele e sei que a minha mãe também sente a mesma coisa. Tal como tu o estás a sentir.
Mas estarás sempre no meu coração, tal como eu estarei no teu. Terás sempre um lugar especial no meu coração. A minha melhor amiga.
Neste momento, sou capaz de fechar os olhos e pensar na primeira vez que nos vimos, há dez anos atrás. Os meus pais tinham acabado de se divorciar e eu estava confusa, então apareceste tu e fizeste-me rir quando quis chorar. Nunca serei capaz de esquecer isso. És minha irmã.
Ainda bem que o Tiago te convidou para sair! Finalmente! Estava a ver que não saíam desses movimentos lentos, em que um avança um passo e o outro recua dois. Espero sinceramente que corra tudo bem.
Quanto às novidades, contar-te-ei tudo quando chegar a Cravenwoods. Neste momento estou no avião, em direcção a Londres onde vou fazer escala para Washington.
Espero que em Cravenwoods haja rapazes. Mas neste momento não penso muito neles. Terei muito trabalho em adaptar-me ao novo método de ensino. Vai ser complicado.
O pai está quinze dias de férias agora. Portanto, vai ajudar-me. Mas estou tão nervosa! É tudo o que eu sempre quis!
Dentro em breve escreverei mais.
Adoro-te,
Vai dando notícias,
A tua, sempre amiga,
Prue.”

Uma lágrima teimosa desceu pelo meu rosto. Por mais que quisesse ir para os Estados Unidos, sentiria falta de muita coisa.
Havia outro e-mail, mas de uma revista. Estavam à espera que eu decidisse trabalhar para eles em part-time. Mais uma vez a minha resposta foi: Não obrigado. Estarei a viver nos Estados Unidos durante uns tempos. Não tenho possibilidade de conciliar as duas coisas. Mas estou extremamente grata pela oportunidade que me ofereceram.
Outros e-mails esperavam resposta, mas eram respostas que poderiam esperar até eu ter paciência para escrevê-las.
Voltei a pegar na minha pesquisa sobre música na sociedade actual e comecei a escrever. Eles não me importavam. Só o meu trabalho tinha a minha atenção.
Sobressaltei-me quando ouvi o aviso, pelo microfone.
-Caros passageiros, vamos começar os preparativos para a aterragem em Londres. Por favor, desliguem todo o material electrónico e coloquem os cintos de segurança. Esperamos que tenham feito uma boa viagem. Obrigado pela preferência.
Ao ouvir isto, comecei a desligar o computador.
Depois de aterrar apanharia outro avião, em pouco mais de trinta minutos para Washington. E aí sim, começaria a minha grande aventura. Estava cada vez mais perto de o conseguir. Estava cada vez mais perto dos Estados Unidos da América e do pai. Mais perto de Cravenwoods.
Guardei o portátil na mala, peguei na mochila de mão e apertei o cinto de segurança.
Quando sentimos o avião aterrar em solo britânico, foi como se algo me atravessasse o coração. Uma emoção muito forte invadiu-me. Um dos verões que passei com o pai, viemos a Londres. Ao Museu de Cera. E divertimo-nos imenso. Outro Verão, fomos a Itália. Cada ano era uma coisa diferente.
Jake e Ben nunca mais falaram comigo desde que eu disse o nome do pai. Pareciam assustados. Terrificados era a palavra certa. Pareciam estar com terror até de respirar o mesmo ar que eu. E isso deixou-me dividida entre a exasperação e o divertimento.
Deixei-os em paz. Afinal de contas, não iriam estragar a minha viagem.
Quando saí do avião e me vi na alfândega do Heathrow International Airport vi-me transportada para uma realidade completamente diferente de qualquer outra em Portugal. Milhares e milhares de pessoas estavam à minha frente. Cada uma andava ao seu próprio ritmo, mesmo os grupos andavam meio separados. Era uma mistura incrível de pessoas. Cada uma única e indispensável para aquela cena.
Naquele momento gostaria de ser pintora, ou ter qualquer jeito para o desenho, e puder desenhar aquela cena. Era tão cativante, tão fantástica.
Consegui ver uma avó, despedir-se da sua pequena menina, ambas a chorar; um casal também a despedir-se, ela não muito contente e ele desejoso de se ver livre dela; um homem de negócios, solitário, com a sua mala de executivo numa mão e o PDA na outra.
Aquelas pessoas, todas diferentes estavam, mesmo que não se dessem conta, à espera do mesmo: um avião que os separaria das suas responsabilidades ou familiares. Traria, de algum modo, algum conforto a alguns deles, mas havia melancolia e tristeza, em geral, dentro daquela área enorme.
Vi também muitas lojas, grandes e pequenas, de lembranças, correios, cafés, restaurantes, tudo. Até tinha McDonald’s!
A minha atenção ao que se passava ao meu redor era tão grande que não percebia os empurrões que me davam e ainda sorria para eles.
Deviam estar a achar-me louca!
Comecei a andar lentamente, como se tivesse de reaprender a fazê-lo. De cada vez que passava por Heathrow ficava encantada. Não havia maneira de o evitar. Era tudo tão movimentado e colorido. Era quase como andar na Montanha-Russa a uma velocidade alucinante, conseguia apenas ver os clarões das cores, nada mais do que isso. Sentia-me assim, em relação a Londres. Quase como um sonho maravilhoso.
Mas não pensei mais nos meus companheiros de voo. Tive de ir a correr para o balcão de check-in. Aqui, foi um rapaz que me atendeu. Muito simpático e atencioso. Se eu não fosse “normal”, diria que o meu sorriso o deixara completamente louco por mim.
Ri para mim própria. Essa ideia era absurda.
-Menina Jones, está tudo bem. O Comandante Jones ligou e disse que provavelmente o seu voo se atrasaria e que talvez tivéssemos de esperar por si – disse ele, com um sorriso brilhante. – Por favor, queira seguir-me. Levá-la-ei, em pessoa, ao avião.
Segui-o, estupefacta. O pai tinha poder até em Inglaterra! Isso era demais! A referência com que o rapaz me tratou também me deixou um pouco desnorteada. Era estranho.
Ele abriu-me a porta de um daqueles carros que há no aeroporto, de levar bagagem e sentou-se no lugar do condutor.
-Assim chegaremos mais depressa ao avião – explicou-me, dando a partida.
Aquele tipo de carro, se é que se podia chamar carro, não andava mais do que cinquenta quilómetros por hora e o homem estava a puxá-lo ao máximo.
Em Portugal não tinha idade para conduzir mas esperava que o pai me deixasse conduzir lá em Cravenwoods.
A viagem foi, inegavelmente, mais rápida do que fazê-la a pé. Em pouco mais de cinco minutos percorremos uma distância de meio aeroporto até ao avião em questão.
Saltei do carro e quase voei pela porta do avião. Não queria ser a causa de mais atrasos.
-Menina Jones – chamou uma das hospedeiras. – Eu levo-a ao seu lugar.
Segui-a e ela levou-me à Primeira Classe do avião e eu fiquei surpresa.
-Desculpe – chamei. – O meu bilhete…
-O seu pai ordenou que fosse bem tratada, Miss Jones – disse a hospedeira com um sotaque carregado. Depois sorriu-me. – Eu estive na Marinha durante algum tempo e o Comandante Jones foi meu superior em todas as situações. Temos muito respeito por ele. A maior parte da tripulação desta companhia aérea trabalhou com ele. É um homem fantástico.
Eu sorri orgulhosa. Aquele era o meu pai!
Então, olhei para a minha roupa. Os jeans e o pólo não combinavam em nada com o ambiente luxuoso da Primeira Classe.
-Não se preocupe com a sua roupa, Miss. Está muito bem. Ninguém notará – disse a hospedeira, dando-me um sorriso radiante e encorajador.
A jovem guiou-me pelo corredor luxuoso até parar na primeira fila de poltronas.
-O seu lugar é ao lado da janela, Miss. Ao seu lado estará um senhor mas ele é muito discreto e não fará nada que a possa irritar – disse ela, como se tivesse tomado conhecimento dos rapazes que foram à minha beira no voo anterior.
Eu apenas acenei e sentei-me.
O homem que se encontrava ao meu lado era jovem. Não lhe dava trinta anos. Loiro e muito bonito. Quase um modelo embora fosse muito pálido.
-Diga-me – pedi à hospedeira, esquecendo-o. – Pode trazer-me um cappuccino e uma sanduíche de frango?
-Claro, Miss. Depois de levantarmos voo eu trago.
-Muito obrigado – disse eu extremamente grata. Ao menos desta vez não teria de aturar dois jovens terrivelmente enfadonhos e assustados ao meu lado.
Acomodei-me na poltrona e esperei que o avião levantasse voo para poder ligar o portátil de novo.
Depois de levantarmos voo, a hospedeira trouxe-me o cappuccino e a sandes, que eu comi, enquanto ligava o computador. Estava mesmo faminta e aquela sanduíche era deliciosa. O cappuccino sabia melhor que o que tomei no voo anterior.
Desta vez, sentia-me mais perto de Cravenwoods. Cada vez mais perto. E como se algo fora da minha mente me comandasse, escrevi no Google o nome da cidade.
Apareceram-me muitos resultados. Entrei no site da cidade e a primeira imagem que apareceu foi de um campo verde muito bonito, rodeado de árvores enormes e muito verdes.
O presidente da Câmara fazia um discurso onde dizia que se sentia orgulhoso de Cravenwoods por ter recebido o prémio de Cidade do Mês, oferecido pelo Senador de Washington.
É um orgulho para nós, recebermos este prémio, quando as coisas estão calmas. Gostaria também de dedicar este prémio ao Comandante Mark Jones, pela sua dedicação à nossa pequena cidade e por ter ajudado a restabelecer a paz, quando aqui chegou.”
O pai devia estar muito orgulhoso e eu também estava.
Continuei a ver e descobri vários desaparecimentos, bastante espaçados no tempo para chamar a atenção da polícia, mas que a mim, despertou curiosidade.
Quatro raparigas, preste a fazer dezoito anos, desapareceram misteriosamente de quatro pontos diferentes de Cravenwoods. Bem, não tão misteriosamente, porque todas deixaram cartas aos pais a dizerem que estavam fartas de tudo e que se iam embora. Para não se preocuparem.
A polícia procurou-as por um mês antes de desistir das buscas. Se havia as cartas, eu sabia, eles parariam as buscas. E, afinal, estavam quase a fazer dezoito anos.
Mas…quatro desaparecimentos, todos nas mesmas circunstâncias? Era estranho…
Fiquei a pensar naquilo durante uns minutos mas decidi deixar essa pesquisa para quando tivesse mais tempo, depois, dando por terminada essa parte da viagem, peguei no meu livro e recostei-me na poltrona.
Se a viagem ia ser longa, ao menos seria confortável, pensei, antes de mergulhar no livro.


[1] Hewlett-Packard – marca de computadores inglesa, frequentemente utilizada na Europa.
[2] Mac Intosh – Marca de computadores americana. Também conhecida por ter a famosa Apple.